quinta-feira, janeiro 31, 2008

HELENA&TADEU

Quando chegou em casa, Helena encontrou um bilhete em cima da mesa da cozinha:
"Fui comprar cigarros, volto logo!"
Era óbvio que não voltaria. E de fato, não voltou.
Tadeu era um cara descolado, gostava de artes, boa música, usava all star. Sabia tudo sobre tudo.
Helena reservava-se ao direito de escutar seus velhos discos de blues às sextas-feiras a noite. Conheceram-se inusitadamente, quando ele pediu o açucareiro emprestado.
"Posso?" - Ele apontou.
Ela, olhando por cima dos óculos, fez que sim com a cabeça.
Cinco minutos se passaram entre ele colocar o açúcar no café e sentar-se à mesa junto a ela. Conversaram por horas, como se fossem antigos conhecidos que se reencontraram. Foram os últimos a sair da cafeteria. Ela carregando uma dúzia de fotos em preto e branco, ele de mãos vazias.
Erraram propositalmente o caminho de volta para casa. Eles nem moravam na mesma direção, mas Tadeu, além de descolado, era também um cavalheiro.
Andaram lado a lado o tempo todo.
Ele com as mãos no bolso da calça xadrez, ela abraçada às imagens.
Quando dobraram a esquina, já na rua da casa de Helena, Tadeu, ainda com as mãos no bolso, parou frente a ela, e olhando dentro dos olhos dela disse: "Sabe, parece estranho, a gente mal se conhece, ou melhor, a gente não se conhece, mas eu gosto de você."
Helena enrubreceu e desabraçando as fotografias o retribuiu com um sorriso.
Andaram por mais meio minuto, em silêncio.
Helena parou frente a ele e sorrindo um sorriso maior que o anterior disse: "Eu também gosto de você."
Ficaram parados sob a luz avermelhada vinda do alto do poste, em silêncio, por mais alguns segundos. "Sabe, hoje é sexta, e eu sempre escuto blues na sexta-feira a noite.
Você gosta de blues?"

Helena nem respirou entre as palavras, para não correr o risco de desistir do convite no meio do caminho. "Não entendo muito de blues, mas, seria bacana." "Bacana", ela pensou. "Vou fazer uma nota mental sobre o uso do 'bacana'. Pessoas normais não falam 'bacana' para blues." "Certo, minha casa é logo ali", ela apontou com a mão direita.
Caminharam cerca de duzentos metros. E lá estava a casa.
Grades e janelas vermelhas. Paredes brancas. No jardim, rosas, também vermelhas. Entraram pelo portão. Primeiro ela. Ele logo em seguida.
Ela girou a chave duas vezes e a porta se abriu. Entrando em casa, colocou as fotografias sobre a mesa e fez um sinal com a mão para que Tadeu procurasse um lugar confortável para sentar.
Ele escolheu a poltrona de estofado preto debaixo da janela e, tirando o tênis, sentou com as pernas cruzadas, feito índio.
Helena foi até a cozinha, trouxe vinho tinto seco e serviu a Tadeu.
Colocou um clássico de B.B King na vitrola, e brindaram. Ouvia-se apenas o som das taças quando deixadas sob a mesinha de centro. E as canções.
Helena deitou-se no sofá e fechou os olhos, como se quisesse que o tempo parasse naquela hora. Tadeu também queria que o tempo parasse. Mas ele sabia que não pararia. E ele tinha que fazer alguma coisa.
Dizer que blues era só "bacana" não ajudaria muito caso ele quisesse que Helena o visse não só como o desconhecido do açucareiro.
Sem dizer nada, andou até o sofá e debruçando-se sobre ela, sem pensar, a beijou.
Ela, como se já estivesse prevendo, o retribuiu, como há muito não fazia. Os movimentos que se seguiram eram esperados, mas não planejados, afinal, sexta era dia de blues.
E desde então, todas as sextas-feiras seguintes encontravam-se no café, faziam o mesmo caminho a pé, tomavam vinho, ouviam blues, e se amavam.
E todos os sábados pela manhã ela encontrava o mesmo bilhete sobre a mesa, a respeito dos cigarros.
Mas dessa vez foi diferente. Não se encontraram na sexta-feira. Era uma terça-feira chuvosa e fria. Quando entrou na cafeteria e viu Tadeu sentado, Helena se assustou. Pensou em ir embora, não queria que ele a visse. Mas não deu tempo. Ele levantou para pegar o açúcar na mesa vizinha e a viu parada à porta, estática.
Foi até ela e a puxou pela mão, para que o acompanhasse num café. Ela, muda, não recusou. Tudo era estranho pra ela. A chuva, o gosto do café, as pessoas, e Tadeu.
Tadeu não combinava com terça-feira.
Levantaram-se e como que instintivamente caminharam em direção à casa de Helena.
A caminhada, que pela primeira vez acontecera debaixo de chuva, foi mais curta do que as habituais e tranqüilas caminhadas de sexta-feira.
Quando Helena colocou a chave na fechadura, percebeu que havia dado apenas uma volta, e não duas, como de costume.
E poderia parecer bobagem, mas na cabeça dela, tudo era sinal de que as coisas estavam acontecendo para encurtar o tempo que passariam juntos. O vinho tinha acabado. O plano era repor o estoque na quinta, mas ainda era terça. A trilha não poderia ser blues, porque blues só se ouve na sexta, e ainda era terça.
Tadeu sentou, diferente das sextas, no sofá onde Helena sempre deitava. Ela, por sua vez, sentou-se no chão, cruzando as pernas, fitando a chuva que caia lá fora.
Amaram-se. E até isso foi diferente das sextas-feiras. Sem blues, sem vinho, o barulho da chuva. O toque dele era mais frio. Ela não queria tocá-lo. Seus olhos não se encontravam, nada se encontrava. Pareciam desconexos. Pareciam estranhos. Eram estranhos.
Dormiram ali mesmo, no chão da sala. Ela, quando acordou, o deixou no chão e saiu, largando sobre a mesa um bilhete: "Fui trabalhar, volto para o almoço."
Durante o caminho de ida, e na volta, ficou pensando no que aconteceu. Sabia que não aconteceria novamente, nem as terças, nem as sextas, nem nunca mais.
Sabia que chegaria em casa e não o encontraria, nem no chão, nem sentado na poltrona de estofado preto, nem em lugar nenhum.
Sabia que aquele tinha sido o fim.
"Maldita terça-feira", ela pensou, chutando as pedras no caminho.
Quando chegou em casa, Helena encontrou um bilhete em cima da mesa da cozinha:
"Fui comprar cigarros, volto logo!"
E então ela teve a confirmação daquilo que seus passos diziam.
"Não deveria acabar, não poderia acabar assim, da noite para o dia."
Mas acabou.

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